As mãos que seguraram um rifle tiveram o mesmo propósito dos pés que deram um passe precioso para um gol: representar a esperança de dias melhores para uma nação. As ações, tão antagônicas entre si, marcaram a vida do meio-campista Walid El-Khatrouchi nos últimos 10 meses, em uma das histórias mais impressionantes da Copa Africana de Nações 2012, sediada em conjunto por Guiné Equatorial e Gabão.
O jogador, 26 anos, era contra o regime do ditador Muammar Kadafi, que dirigiu a Líbia com mão de ferro por 42 anos. Porém, o estopim para que El-Khatrouchi, do Al-Ittihad, da capital Trípoli, fosse parte integrante da Primavera Árabe – movimento popular que ajudou a derrubar várias ditaduras no Oriente Médio em 2011 – surgiu de uma consequência da guerra civil que chegou até seu cotidiano: um amigo do atleta havia perdido um braço durante um combate, poucos dias após o meio-campista marcar um dos gols da vitória contra Comores por 3 a 0, pelas eliminatórias do torneio africano, em 28 de março.
Dali em diante, El-Khatrouchi decidiu não mais defender a camisa verde da Líbia de Kadafi e se juntou aos rebeldes em Jebel Nafusa, cidade próxima à fronteira com a Tunísia, onde combateu, com a arma em punho, os aliados do então ditador. E a morte de Kadafi, em 20 outubro de 2011, foi o apogeu de uma festa que havia começado no início do mês, 12 dias antes: o empate com a Zâmbia, que deu o direito à seleção comandada pelo experiente técnico brasileiro Marcos Paquetá retornar à Copa Africana após hiato de seis anos.
Finalista em 1982, em plena era Kadafi, a seleção não passou da primeira fase em 2006. Porém, munida de nova bandeira e novo uniforme – que remetem à independência do país junto a Itália, em 1951, nas cores vermelha, preta, verde e branca -, a equipe ainda não havia marcado gols em uma fase final de Copa Africana, condição ratificada após a derrota na estreia para Guiné Equatorial, no fim da partida, por 1 a 0, em 21 de janeiro deste ano.
Entretanto, logo aos 5min da partida contra Zâmbia, disputada na última quarta (dia 25), foi dos pés de El-Khatrouchi, com o uniforme branco da nova Líbia, que saiu o passe para Ahmed Osman marcar o gol que abriria o marcador da partida finalizada com empate por 2 a 2.
Ironia do destino ou não, poucos minutos após a assistência para o tento histórico, o meio-campista deixou o campo de jogo lesionado e não enfrentou o lanterna Senegal na tarde de ontem. A Líbia segue com chances de avançar às quartas de final. O palco do gol, assim como de todos os confrontos do Grupo A, não poderia ter nome mais sugestivo: Estádio da Liberdade.
Em vários meses de batalha contra o regime de Kadafi, onde estima-se que tenham morrido cerca de 20 mil civis, o atleta saiu ileso, diferente de alguns ex-colegas de seleção, feridos de ambos os lados.
“Para nós, é muito mais do que um torneio de futebol”, disse El-Khatrouchi logo após a derrota na estreia contra Guiné Equatorial. Diante de um novo país, de nova bandeira e novo uniforme, termos como “batalha”, “artilheiro” e “matador”, para todo o elenco convocado por Paquetá, serão apenas gírias futebolísticas no campo de jogo. Tudo em prol de uma nova história, que pode ser iniciada por meio do futebol.
Blog com Terra Esportes